domingo, 23 de dezembro de 2018

Livro velho - Conto da coletânea Natal em Palavras

O sono já não era como antes. Na verdade, em muitos momentos durante a noite e durante o dia, não sabia exatamente se estava a dormir ou acordado. Por vezes ouvia vozes a percorrerem-lhe a casa. Aproximavam-se do quarto e afastavam-se até à cozinha. Não raro, ouvia a sua própria voz a esmorecer, como se estivesse a deslocar-se até ao outro lado da casa e, depois, reavivava, como que a aproximar-se de novo. Mesmo antes de abrir os olhos, sentia-se acordado e deitado na cama. No seu lado da cama. O resto da cama estava vazio e os cobertores já não lhe pesavam como antes. De cada lado da cama, as mesinhas de cabeceira mantinham-se como sempre. Limpas e arrumadas. Cada uma com o seu candeeiro de leitura. O candeeiro do outro lado da cama há muito que não era ligado. Tinha sido a lâmpada do seu lado que se estragara e ele fizera a troca, sem substituir a do outro lado da cama. Ao fundo da cama, a cómoda mantinha-se igualmente inalterada. As gavetas, bem trancadas, pareciam que nunca mais tinham sido abertas. Dois gavetões, na verdade. Um com a roupa dela, outra com a sua própria roupa. Em cima da cómoda pousava uma moldura com uma fotografia tirada no dia do seu casamento. A foto tinha mais de cinquenta anos. Bastante mais, mas ele não se lembrava quanto. Os noivos sorriam-lhe. Estavam felizes. Ao lado da moldura existia um terceiro candeeiro que era ligado uma vez em cada noite. Por baixo da luz, duas caixas. Uma por cima da outra. A de cima era de um amarelo pálido e a de baixo, castanha e um pouco mais alta. A de cima continha uma outra, mais pequena, e era azul para se distinguir de uma rosa que já não andava por ali. Estaria provavelmente guardada na prateleira fechada da mesinha de cabeceira do outro lado da cama. Do outro lado da cama, em cima da outra almofada branca, ele mantinha uma recordação dela. Um livro escrito por ela, quando ainda eram namorados. A presença física daquele romance e a sua sensação ao tocar-lhe, fazia-o tomar consciência da sua própria identidade, muitas vezes com uma força que o fazia agarrar-se à vida. E a recordação daquela narrativa trazia-lhe de volta a vida. A sua vida, a vida dela, que já não era sua e a vida do filho. A verdade é que ele sempre vira o filho como um velho e, quando este morreu, aos quarenta anos de idade, aparentava sessenta ou mais, parecendo mais velho do que ele próprio nessa altura. Tudo isto eram coisas que ele já não contava a ninguém. Mas, hoje, era natal e os seus planos eram outros. Hoje ia deitar-se de lado. Virado para o outro lado da cama. Hoje ia olhar o livro que ela escrevera quando ainda eram namorados. E ia lê-lo, em silêncio. Margarida Frias Rocha Porto

Sem comentários:

Enviar um comentário