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Marquei encontro com a Lua – disse ontem o João, enquanto enrolava a folha já
amarfanhada e suja do seu caderno.
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Foi a maior lua cheia dos últimos sessenta e oito anos. E só a voltaremos a ver
assim daqui a dezoito! – Informou com a naturalidade de um cientista
especializado na área ou um jornalista competente.
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Ontem, às dezassete horas e quarenta e nove minutos olhei para a lua e pensei
que o meu pai também estaria a olhar para ela, lá da Alemanha. Mas não sei se a
minha mãe não estaria muito ocupada no seu restaurante de luxo, aqui em Gaia,
para também a poder ver ao mesmo tempo que nós…
- Tens falado
com o teu pai, João?
- Sim, por skype, quase todos os dias. Na próxima
terça-feira faço sete anos e ele vai mandar-me um telemóvel novo e talvez uma
consola também.
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Com quem vives, João?
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Com o meu avô materno. Só os dois. A minha avó morreu durante as últimas férias
de verão. A minha mãe perguntou-me se eu queria ir viver com ela, mas sei que
não estava a falar a sério, pois ela está sempre ocupada e não tem tempo para
mim.
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Costumas ver ou falar com a tua mãe?
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Às vezes, vejo-a ao domingo… - interrompe a resposta, parecendo distrair-se com
a folha que ainda tem nas mãos.
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Gostas de estar com o teu avô?
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Gosto. Ele trata-me bem. Vamos comemorar o natal. Por minha causa. Gosto de ir
ao jardim com ele. Cozinha bem, trata da minha roupa, (…), Gosto de ir ao zoo,
ao Sea Life, jogar paintball, …
-Fazes
isso tudo com o teu avô?
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Não! Faço com o meu pai … Ele já cá veio uma vez ver-me e esteve comigo quatro
dias. E eu, um dia, vou ter com ele à Alemanha. Quero ir sozinho, de avião, e
ele vai esperar-me ao aeroporto!...
(…)
O professor do
João pediu-me para ir à escola observar e consultar o seu aluno que, desde o
dia em que foi integrado neste novo contexto escolar, tem apresentado uma determinada instabilidade emocional. Tem ideia que o João, apesar de dar sinais de um
desenvolvimento cognitivo expectável, não rentabiliza as suas capacidades, não
desenvolve as suas competências escolares de modo semelhante aos pares.
Depois
de estar com o João, na conversa que tive com o professor, este referiu-me que
o seu aluno, apesar de bem integrado nesta sua nova turma e se mostrar em
muitos momentos alegre e comunicativo, por vezes isola-se no tempo do recreio e
frequentemente é encontrado a um canto do pátio, onde se localiza um pequeno
canteiro com uma oliveira no centro.
João
encosta-se à “sua” árvore e olha as nuvens e os riscos de algodão branco
pintados pelos aviões, avalia a tonalidade do céu e dos sonhos.
E
o professor vai fazendo os seus próprios registos mentais, olhando os olhos do
seu pupilo sempre que este retorna à sala.
O
professor sabe que esta criança terá que aprender a lidar com as perdas e com
os possíveis sentimentos de abandono. Tem conhecimento que pode estar em risco
de evoluir na adolescência para condutas mais marginais ou até para
comportamentos aditivos, pois apercebe-se que as suas atitudes muitas vezes se
inscrevem num padrão de desconfiança básica em relação a outros,
particularmente a adultos.
O professor
sabe que uma criança vítima de abandono ou de qualquer tipo de violência pode
vir a ser um adulto com comportamentos desadaptados ou apresentar sinais de
patologia transgeracional.
Mas…
O professor
sabe que, se tiver a capacidade de oferecer ao seu aluno um modelo de relação
recheado de boas experiências comportamentais e emocionais, orientadoras e seguras,
o João terá uma maior probabilidade de confiar nas pessoas que o circundam e
naquelas que o virão a rodear. E em si. E vai poder acreditar que, sempre que
olhar a lua, quer ela esteja no seu tamanho aumentativo ou não, outros a
olharão do mesmo modo, em sintonia.
O João já se
sentiu perdido, abandonado, inseguro e ilimitadamente triste.
Mas o João
pode contar com adultos que se preocupam com ele, que vão tentar compreender as
suas necessidades e ajudá-lo a entender o que sente.
O João poderá
vir estabelecer ligações preciosas na sua vida.
Poderá vir a olhar
a lua em sintonia com alguém.