quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

MARQUEI ENCONTRO COM A LUA, Margarida Frias Rocha


                - Marquei encontro com a Lua – disse ontem o João, enquanto enrolava a folha já amarfanhada e suja do seu caderno.
                - Foi a maior lua cheia dos últimos sessenta e oito anos. E só a voltaremos a ver assim daqui a dezoito! – Informou com a naturalidade de um cientista especializado na área ou um jornalista competente.
                - Ontem, às dezassete horas e quarenta e nove minutos olhei para a lua e pensei que o meu pai também estaria a olhar para ela, lá da Alemanha. Mas não sei se a minha mãe não estaria muito ocupada no seu restaurante de luxo, aqui em Gaia, para também a poder ver ao mesmo tempo que nós…
- Tens falado com o teu pai, João?
- Sim, por skype, quase todos os dias. Na próxima terça-feira faço sete anos e ele vai mandar-me um telemóvel novo e talvez uma consola também.
                - Com quem vives, João?
                - Com o meu avô materno. Só os dois. A minha avó morreu durante as últimas férias de verão. A minha mãe perguntou-me se eu queria ir viver com ela, mas sei que não estava a falar a sério, pois ela está sempre ocupada e não tem tempo para mim.
                - Costumas ver ou falar com a tua mãe?
                - Às vezes, vejo-a ao domingo… - interrompe a resposta, parecendo distrair-se com a folha que ainda tem nas mãos.
                - Gostas de estar com o teu avô?
                - Gosto. Ele trata-me bem. Vamos comemorar o natal. Por minha causa. Gosto de ir ao jardim com ele. Cozinha bem, trata da minha roupa, (…), Gosto de ir ao zoo, ao Sea Life, jogar paintball, …
                -Fazes isso tudo com o teu avô?
                - Não! Faço com o meu pai … Ele já cá veio uma vez ver-me e esteve comigo quatro dias. E eu, um dia, vou ter com ele à Alemanha. Quero ir sozinho, de avião, e ele vai esperar-me ao aeroporto!...
                (…)
O professor do João pediu-me para ir à escola observar e consultar o seu aluno que, desde o dia em que foi integrado neste novo contexto escolar, tem apresentado uma determinada instabilidade emocional. Tem ideia que o João, apesar de dar sinais de um desenvolvimento cognitivo expectável, não rentabiliza as suas capacidades, não desenvolve as suas competências escolares de modo semelhante aos pares.
                Depois de estar com o João, na conversa que tive com o professor, este referiu-me que o seu aluno, apesar de bem integrado nesta sua nova turma e se mostrar em muitos momentos alegre e comunicativo, por vezes isola-se no tempo do recreio e frequentemente é encontrado a um canto do pátio, onde se localiza um pequeno canteiro com uma oliveira no centro.
                João encosta-se à “sua” árvore e olha as nuvens e os riscos de algodão branco pintados pelos aviões, avalia a tonalidade do céu e dos sonhos.
                E o professor vai fazendo os seus próprios registos mentais, olhando os olhos do seu pupilo sempre que este retorna à sala.
                O professor sabe que esta criança terá que aprender a lidar com as perdas e com os possíveis sentimentos de abandono. Tem conhecimento que pode estar em risco de evoluir na adolescência para condutas mais marginais ou até para comportamentos aditivos, pois apercebe-se que as suas atitudes muitas vezes se inscrevem num padrão de desconfiança básica em relação a outros, particularmente a adultos.
O professor sabe que uma criança vítima de abandono ou de qualquer tipo de violência pode vir a ser um adulto com comportamentos desadaptados ou apresentar sinais de patologia transgeracional.
Mas…
O professor sabe que, se tiver a capacidade de oferecer ao seu aluno um modelo de relação recheado de boas experiências comportamentais e emocionais, orientadoras e seguras, o João terá uma maior probabilidade de confiar nas pessoas que o circundam e naquelas que o virão a rodear. E em si. E vai poder acreditar que, sempre que olhar a lua, quer ela esteja no seu tamanho aumentativo ou não, outros a olharão do mesmo modo, em sintonia.
O João já se sentiu perdido, abandonado, inseguro e ilimitadamente triste.
Mas o João pode contar com adultos que se preocupam com ele, que vão tentar compreender as suas necessidades e ajudá-lo a entender o que sente.
O João poderá vir estabelecer ligações preciosas na sua vida.
Poderá vir a olhar a lua em sintonia com alguém.