- Acabei de lhe beijar a testa, sei bem como a temperatura dele está estável!
- Não
consigo deixar de lhe tocar.
- Eu
percebo. Também sinto o mesmo. Mas às vezes penso que se continuarmos aqui ele não acorda. Talvez, se te conseguisses afastar um bocadinho, ele
sentisse a tua falta e fizesse um esforço para abrir os olhos e te procurar!
-
Achas? Quem me dera ter coragem para tentar! Não consigo afastar-me dele, nem
mesmo ir para o cadeirão!
- Se
calhar tens razão, eu é que devia tentar afastar-me. Se calhar é a minha
presença que lhe faz mal!
- Não
digas disparates! Mas, se quiseres ir dar uma volta… apanhar ar, comer qualquer
coisa… ir a casa, ver como está tudo…
- Está
tudo bem por lá. O meu irmão estava comigo quando ligaste. Foi ele que fechou a
porta da frente e ligou o alarme. Lembro-me disso, apesar de ter ficado
desorientado.
- Foi
ele que te trouxe. Porque não veio ver o Rodrigo?
- Disse
que tinha que ir buscar a Belinha à escola. Mas acho que não teve coragem de
ver o sobrinho assim.
- É
pena. O Rodrigo iria gostar de o ouvir falar com ele.
- Como
sabes que ele ouve? Sendo assim... também nos ouve. Não achas que é estranho
falarmos deste modo tão perto dele?
- Ele
gosta das nossas vozes. Não te lembras como reagia quando ainda estava dentro
de mim e tu te aproximavas e lhe falavas?
- Achas
que pode ser a mesma coisa?
- Claro
que não é a mesma coisa! Só estou a dizer que ele nos pode ouvir e que gosta
das nossas vozes. Está de certeza a sentir-nos com ele!
- Está
bem, não te zangues! Ele não está habituado a que tu te zangues!
- Há
sempre uma primeira vez para tudo. E sim estou mesmo zangada! Mas não é com
ele!
- É
comigo? Tens razão. Eu devia ter estado com ele naquele momento. Era o meu dia
de o ir buscar à escola!
-
Disseste que terias uma reunião. Eu disse-te que o ia buscar…
- Mas
não tive. E o Bruno foi ter comigo para irmos beber um copo. Tínhamos que falar
sobre a trasladação das ossadas da minha mãe.
- Que
raio de conversa! Não fales nisso agora!
-
Porquê? Foi o que aconteceu! O Bruno foi ter comigo ao escritório e falamos
sobre a translação das ossadas da minha mãe!
- Já te
pedi para não falares nisso! Respeita o teu filho!
-
Porque é que dizes que o estou a desrespeitar? Ele tem que aprender a ouvir
falar de tudo!
- Não
sejas macabro! Muda de assunto, se faz favor!
- Está
bem. Dá-me a tua mão. Eu…quero estar também contigo! Convosco!
- Tu
estás connosco!
- Não.
Às vezes não estou, vocês não deixam!
- Que
estás para aí a dizer?!
- Nada.
Não estou a dizer nada! Só que … não és só tu que tens medo!
- O
médico nunca mais chega. Ninguém nos diz nada! E a polícia? Não me lembro do
que lhes disse… Não me lembro de nada!
- A
Antónia não estava contigo? A Antónia está sempre contigo!
- Agora
vais implicar com a Antónia? Claro que estava comigo! Foi ela que falou mais
com a polícia! E falou com o tipo… Era tão novo! Acho que nem tinha idade para
conduzir!
- Então
pior para ele! A polícia levou-o, não foi?
- Foi.
Tremia todo! Estava tão indefeso!
- Agora
estás com pena do tipo? É mesmo teu! Teres pena dos culpados! Mas não é nenhum
dos teus clientes… é o gajo que quase
matou o nosso filho!
- Eu
sei! Não estou a defender ninguém! Odeio-o!
- Só me
apetece ir ter com ele e … sei lá… matá-lo!
- Eu…
ainda não sinto nada disso! Não sei porquê, mas … estou como que anestesiada!
-
Deram-te alguma coisa para tomar, aqui, antes de eu chegar?
- Não.
Acho… que a Antónia me deu qualquer coisa para tomar quando o levaram para
fazer exames. Não me lembro bem.
-
Claro! A Antónia agora é médica?
- Vais
começar outra vez?
- Sabes
o que tomaste ou não?
- Pára!
Só estou a tentar explicar-te o porquê de estar mais calada do que seria
esperado! É… como se sentisse culpa de não estar tão nervosa como seria de
esperar que estivesse nessa situação!
- Tu és
muito intuitiva! Estás calma porque pressentes que tudo vai correr bem!
-
Obrigada pelas tuas palavras! Finalmente chegou o meu marido!
-
Desculpa, estou nervoso! Sinto um peso no peito.
- Eu é
que peço desculpa! Estamos ambos nervosos. O médico nunca mais chega.
- Estou
a ouvir passos no corredor… deve ser ele!
-
Senhora Enfermeira! Já nos pode dizer alguma coisa?
- Vou
medir a temperatura ao Rodrigo. E tirar algum sangue para análise. Será melhor
afastarem-se só um bocadinho… por favor!
- Não
consigo, senhora enfermeira! Eu não me importo de ajudar… As agulhas há muito que não me fazem
confusão!
- É
melhor sentar-se mais confortável um pouco… Precisa de descansar para estar bem
quando ele acordar!
- Acha
que ele vai mesmo acordar? O Sr. Doutor disse alguma coisa?
- Não,
ainda não. É preciso ter paciência. Estamos à espera de resultados. Mas temos
que ser confiantes!
-
Sente-se tonta, não é? Por favor, recoste-se um pouco no cadeirão.
- Não
consigo….
- Anda
Ana, encosta-te a mim! Deixa a Senhora Enfermeira trabalhar…
- Ele
está estável. Vamos aguardar com serenidade. Precisam de alguma coisa, um chá,
talvez… Vou pedir para lhes trazerem alguma coisa.
-
Obrigada.
- Como
se conseguíssemos tomar alguma coisa. Ela fala como se tudo estivesse normal!
- Chiu!
Ela ainda não se afastou, pode ouvir-nos!
- Quero
lá saber! Parece que tudo isto não passa de um pesadelo!
- Eu
sinto o mesmo. Mas... vai passar, vais ver… tudo vai correr bem! Espera! Deixa-te
ficar aqui, descansa mais um pouco!
- Não
consigo! Tenho que estar mais perto dele! A mão dele continua na mesma
temperatura. Deve ser bom sinal! Rodrigo, meu amor, ouve a mamã…. Descansa o
que precisares, meu querido, mas dá-me um sinal que estás bem!
(...)
Silêncio.
As
lágrimas caem em ambos os rostos.
As
gargantas secam.
As
vozes prendem-se.
As
respirações desaceleram.
Lentamente,
o quarto começa a serenar.
Lá
fora, o vento para.
Os
suspiros soltam-se.
A
harmonia volta.
Rodrigo
sorri.