quinta-feira, 5 de novembro de 2015

(NÃO)OUVIR / Margarida Frias Rocha






- Acabei de lhe beijar a testa, sei bem como a temperatura dele está estável!
- Não consigo deixar de lhe tocar.
- Eu percebo. Também sinto o mesmo. Mas às vezes penso que se continuarmos aqui ele não acorda. Talvez, se te conseguisses afastar um bocadinho, ele sentisse a tua falta e fizesse um esforço para abrir os olhos e te procurar!
- Achas? Quem me dera ter coragem para tentar! Não consigo afastar-me dele, nem mesmo ir para o cadeirão!
- Se calhar tens razão, eu é que devia tentar afastar-me. Se calhar é a minha presença que lhe faz mal!
- Não digas disparates! Mas, se quiseres ir dar uma volta… apanhar ar, comer qualquer coisa… ir a casa, ver como está tudo…
- Está tudo bem por lá. O meu irmão estava comigo quando ligaste. Foi ele que fechou a porta da frente e ligou o alarme. Lembro-me disso, apesar de ter ficado desorientado.
- Foi ele que te trouxe. Porque não veio ver o Rodrigo?
- Disse que tinha que ir buscar a Belinha à escola. Mas acho que não teve coragem de ver o sobrinho assim.
- É pena. O Rodrigo iria gostar de o ouvir falar com ele.
- Como sabes que ele ouve? Sendo assim... também nos ouve. Não achas que é estranho falarmos deste modo tão perto dele?
- Ele gosta das nossas vozes. Não te lembras como reagia quando ainda estava dentro de mim e tu te aproximavas e lhe falavas?
- Achas que pode ser a mesma coisa?
- Claro que não é a mesma coisa! Só estou a dizer que ele nos pode ouvir e que gosta das nossas vozes. Está de certeza a sentir-nos com ele!
- Está bem, não te zangues! Ele não está habituado a que tu te zangues!
- Há sempre uma primeira vez para tudo. E sim estou mesmo zangada! Mas não é com ele!
- É comigo? Tens razão. Eu devia ter estado com ele naquele momento. Era o meu dia de o ir buscar à escola!
- Disseste que terias uma reunião. Eu disse-te que o ia buscar…
- Mas não tive. E o Bruno foi ter comigo para irmos beber um copo. Tínhamos que falar sobre a trasladação das ossadas da minha mãe.
- Que raio de conversa! Não fales nisso agora!
- Porquê? Foi o que aconteceu! O Bruno foi ter comigo ao escritório e falamos sobre a translação das ossadas da minha mãe!
- Já te pedi para não falares nisso! Respeita o teu filho!
- Porque é que dizes que o estou a desrespeitar? Ele tem que aprender a ouvir falar de tudo!
- Não sejas macabro! Muda de assunto, se faz favor!
- Está bem. Dá-me a tua mão. Eu…quero estar também contigo! Convosco!
- Tu estás connosco!
- Não. Às vezes não estou, vocês não deixam!
- Que estás para aí a dizer?!
- Nada. Não estou a dizer nada! Só que … não és só tu que tens medo!
- O médico nunca mais chega. Ninguém nos diz nada! E a polícia? Não me lembro do que lhes disse… Não me lembro de nada!
- A Antónia não estava contigo? A Antónia está sempre contigo!
- Agora vais implicar com a Antónia? Claro que estava comigo! Foi ela que falou mais com a polícia! E falou com o tipo… Era tão novo! Acho que nem tinha idade para conduzir!
- Então pior para ele! A polícia levou-o, não foi?
- Foi. Tremia todo! Estava tão indefeso!
- Agora estás com pena do tipo? É mesmo teu! Teres pena dos culpados! Mas não é nenhum dos teus clientes… é o gajo que quase matou o nosso filho!
- Eu sei! Não estou a defender ninguém! Odeio-o!
- Só me apetece ir ter com ele e … sei lá… matá-lo!
- Eu… ainda não sinto nada disso! Não sei porquê, mas … estou como que anestesiada!
- Deram-te alguma coisa para tomar, aqui, antes de eu chegar?
- Não. Acho… que a Antónia me deu qualquer coisa para tomar quando o levaram para fazer exames. Não me lembro bem.
- Claro! A Antónia agora é médica?
- Vais começar outra vez?
- Sabes o que tomaste ou não?
- Pára! Só estou a tentar explicar-te o porquê de estar mais calada do que seria esperado! É… como se sentisse culpa de não estar tão nervosa como seria de esperar que estivesse nessa situação!
- Tu és muito intuitiva! Estás calma porque pressentes que tudo vai correr bem!
- Obrigada pelas tuas palavras! Finalmente chegou o meu marido!
- Desculpa, estou nervoso! Sinto um peso no peito.
- Eu é que peço desculpa! Estamos ambos nervosos. O médico nunca mais chega.
- Estou a ouvir passos no corredor… deve ser ele!
- Senhora Enfermeira! Já nos pode dizer alguma coisa?
- Vou medir a temperatura ao Rodrigo. E tirar algum sangue para análise. Será melhor afastarem-se só um bocadinho… por favor!
- Não consigo, senhora enfermeira! Eu não me importo de ajudar…  As agulhas há muito que não me fazem confusão!
- É melhor sentar-se mais confortável um pouco… Precisa de descansar para estar bem quando ele acordar!
- Acha que ele vai mesmo acordar? O Sr. Doutor disse alguma coisa?
- Não, ainda não. É preciso ter paciência. Estamos à espera de resultados. Mas temos que ser confiantes!
- Eu estou confiante. Mas…
- Sente-se tonta, não é? Por favor, recoste-se um pouco no cadeirão.
- Não consigo….
- Anda Ana, encosta-te a mim! Deixa a Senhora Enfermeira trabalhar…
- Ele está estável. Vamos aguardar com serenidade. Precisam de alguma coisa, um chá, talvez… Vou pedir para lhes trazerem alguma coisa.
- Obrigada.
- Como se conseguíssemos tomar alguma coisa. Ela fala como se tudo estivesse normal!
- Chiu! Ela ainda não se afastou, pode ouvir-nos!
- Quero lá saber! Parece que tudo isto não passa de um pesadelo!
- Eu sinto o mesmo. Mas... vai passar, vais ver… tudo vai correr bem! Espera! Deixa-te ficar aqui, descansa mais um pouco!
- Não consigo! Tenho que estar mais perto dele! A mão dele continua na mesma temperatura. Deve ser bom sinal! Rodrigo, meu amor, ouve a mamã…. Descansa o que precisares, meu querido, mas dá-me um sinal que estás bem!
(...)
Silêncio.
As lágrimas caem em ambos os rostos.
As gargantas secam.
As vozes prendem-se.
As respirações desaceleram.
Lentamente, o quarto começa a serenar.
Lá fora, o vento para.
Os suspiros soltam-se.
A harmonia volta.
Rodrigo sorri.