domingo, 18 de fevereiro de 2018

O Livro Velho




O sono já não era como antes. Na verdade, em muitos momentos durante a noite e durante o dia, não sabia exatamente se estava a dormir ou acordado.
Por vezes ouvia vozes a percorrerem-lhe a casa. Aproximavam-se do quarto e afastavam-se até à cozinha. Não raro, ouvia a sua própria voz a esmorecer, como se estivesse a deslocar-se até ao outro lado da casa e, depois, a aproximar-se de novo.
Mesmo antes de abrir os olhos, sentia-se acordado e deitado na cama. No seu lado da cama. O resto da cama estava vazio e os cobertores já não lhe pesavam como antes. Agora, quando acordava, já não se encontrava deitado de lado ou de barriga para baixo como antes lhe acontecia. Já fazia uma meia dúzia de anos que acordava, como se deitara, de barriga para cima e com a cabeça enterrada na almofada. Bem no centro da almofada branca, entre os lençóis brancos, o de cima com uma renda branca dobrada por cima de dois cobertores esbranquiçados. A roupa da cama mantinha-se quase intacta toda a noite. Pouco ou nada remexida.
De cada lado da cama, as mesinhas de cabeceira mantinham-se como sempre. Excetuando algumas partículas de pó que se lhes pousava, limpas e arrumadas. Cada uma com o seu candeeiro de leitura.
O candeeiro do outro lado da cama há muito que não era ligado. Tinha sido a lâmpada do seu lado que se estragara e ele fizera a troca, sem substituir a do outro lado da cama.
Ao fundo da cama, a cómoda mantinha-se igualmente inalterada. As gavetas, bem trancadas, pareciam que nunca mais tinham sido abertas. Três gavetões, na verdade. Um com a roupa dela, outra com a sua própria roupa, que já não usava, e um terceiro com a roupa da cama que já não chegava a usar. A D. Manuela vinha uma vez por semana, trocava a roupa da cama por outro conjunto de lençóis que lavara na semana anterior, e entretanto tinham secado e ela engomava na hora de trocar a cama. Excetuando a almofada decorativa que uma vez por semana era colocada no meio da cama, parecia que mais nada se mexia, nada mudava de lugar.
Em cima da cómoda pousava uma moldura com uma fotografia tirada no dia do seu casamento. A foto tinha mais de cinquenta anos. Bastante mais, mas ele não se lembrava quanto. Os noivos sorriam-lhe. Estavam felizes.
Ao lado da moldura existia um terceiro candeeiro que era ligado uma vez em cada noite. Por baixo da luz, duas caixas. Uma por cima da outra. A de cima era de um amarelo pálido e a de baixo, castanha e um pouco mais alta. A de cima continha as caixas dos remédios de onde a nora lhe tirava as doses para cada semana, colocando-as numa terceira caixa, mais pequena e hermeticamente fechada, com compartimentos que dividiam os dias da semana e as horas de cada dia. Um comprimido para cada hora do dia. Todos os compartimentos eram totalmente preenchidos uma vez por semana pela nora e a caixa era colocada debaixo do candeeiro da sua mesinha de cabeceira.
A caixa era azul para se distinguir de uma rosa que já não andava por ali. Estaria provavelmente guardada na prateleira fechada da mesinha de cabeceira do outro lado da cama.
Fazia muito tempo que a caixa castanha não era aberta, nem sequer levantada do seu lugar, em cima da cómoda, como se a sua única função fosse, agora, servir de apoio à caixa amarela. Ele não sabia muito bem se se lembrava do que guardava a caixa castanha.
Ao todo, ele recebia duas visitas por semana. A da nora, às quartas feiras, que, além de lhe tratar dos remédios, cozinhava uma refeição farta. Punha a mesa, na  sala e às vezes ele fazia-lhe companhia, deslocando as suas dificuldades até ao outro lado da casa. Depenicavam ambos dos respetivos pratos meio cheios e meio vazios, tal como as suas conversas, meio cheias e meio vazias.
As mesmas palavras de sempre, o tempo que fazia, a comida que aconchegava, ou pelo menos, devia, e os sucessos dos meninos. Os filhos dela, os seus netos, cujos nomes se envergonhava de não se lembrar exatamente, evitando referi-los para não se desmascarar.
A nora lavava-lhe a louça enquanto ele voltava para o quarto, sentando-se na poltrona encostada à janela. Sabia que no dia seguinte teria de ser ele a colocá-los novamente no lugar certo.
A outra visita da semana era a da D. Manuela, aos sábados, que, depois de lhe limpar a casa e trocar a roupa da cama, cozinhava-lhe uma sopa em quantidade necessária para quatro ou cinco dias da semana e que ele aquecia no micro-ondas, prenda do filho, no último natal que tinham passado juntos.
Na altura, considerou aquele presente totalmente disparatado. Agora, era o único eletrodoméstico que utilizava, recorrendo sempre ao mesmo prato fundo que guardava em cima do prato raso, onde comia a refeição cozinhada pela nora. O prato fundo em cima do prato raso, ao lado do seu trio de talheres e à frente do seu copo, num conjunto completo guardado no lado esquerdo do armário da cozinha. A porta do lado direito desse armário há muito que não era aberta e guardava um conjunto igual ao seu. O dela.
Depois das suas visitas habituais se despedirem dele e saírem porta fora, de encontro às suas próprias rotinas, acontecia-lhe continuar a ouvir as suas vozes. Pelo que ouvia, essas vozes não se dirigiam só a ele, mas principalmente a ela, que lhes respondia, não com a voz de que se lembrava como a mais recente, mas com aquela outra sua voz, mais límpida, que a acompanhara toda a vida até à altura da doença.
Do outro lado da cama, em cima da outra almofada branca, ele mantinha uma recordação dela. Um livro escrito por ela, quando ainda eram namorados. Um romance de uma beleza jamais superada por nenhuma das suas leituras ao longo da vida, nem mesmo pelos outros romances escritos por ela.
Se lhe perguntassem, não saberia responder quantas vezes tinha lido o romance que olhava todos os dias e todas as noites. Talvez umas duas, três ou cinco vezes, há muito tempo. Há muito mais de cinquenta anos, sabia-o de cor. Pelo menos, achava que sabia, embora já não tivesse a certeza se a narrativa que recordava era a mesma que estava escrita ou ser era uma outra, inventada. Reinventada. Por ela ou por ele, já não saberia dizer.
A presença física daquele romance dela e a sua sensação ao tocar-lhe, fazia-o tomar consciência da sua própria identidade, muitas vezes com uma força que o fazia agarrar-se à vida. Simultaneamente, a recordação da sua narrativa trazia-lhe de volta a vida. A sua vida e a vida dela, que já não era sua. E trazia-lhe, de certo modo, a vida do filho de volta.
Gostava de imaginar, muitas vezes, que nesta altura aqueles dois que mais amara, que mais amava ainda, estariam juntos, numa dimensão para onde ele próprio se encontrava a caminhar e sonhava muitas vezes com o reencontro que desejava possível.
A vida do filho tinha sido tão curta! Tão desumanamente curta! Apaixonado desde cedo pelo campo, pela sua ideia de campo, tão verdadeira quanto era possível a uma criança nascida e criada numa cidade grande, depois do liceu tinha ido estudar Agronomia para Trás-os-Montes e ficara por aqueles campos, aqueles montes quase sempre. Tinha vindo à cidade grande algumas vezes para os ver, uma para casar, pelo menos duas para fazer os seus netos e só mais umas duas dezenas de vezes, não mais. Assim que chegava, assim que partia de novo para os seus campos, para os seus montes, para aquelas terras algo áridas mas que sustentavam, apesar da distância, a sua família.
A verdade é que ele sempre vira o filho como um velho e, quando este morreu, aos seus quarenta anos de idade, acabados de fazer, aparentava sessenta ou mais, parecendo mais velho do que ele próprio nessa altura.
A dor da perda do filho tinha sido tão intensa que fez com que ele não se lembrasse da nora nem dos netos nessa fase. Percebia que estes eram unidos, algo solitários, que não referiam redes de amigos nem se lembrava de laços que não os que mantinham com os seus avós maternos. Ainda assim, a nora mantinha a mesma assiduidade que os netos tinham abandonado quando o pai lhes morrera e uma vez por semana vinha cozinhar e almoçar com ele. A meio da semana.
Ainda era jovem, a sua nora. Tinha a capacidade de entrar em sua casa sem chamar a atenção sobre si, nem mesmo a dele. Perguntava-se se alguém sabia que a nora o continuava a visitar todas as quartas feiras, que lhe fazia o almoço e que o fazia uma vez por semana viajar até ao outro lado da casa.
Talvez a vizinha de baixo soubesse. Isso, se por acaso estivesse em casa nesse dia da semana, na hora da visita da nora. A vizinha de baixo, tal como ele, já não ia para nova e preferia passar quase todos os seus dias em casa de uma filha, que morava no outro lado do rio.
E os netos? Saberiam que a mãe continuava a visitar o avô todas as quartas feiras? Porque seria que eles nunca mais a teriam acompanhado? Há quanto tempo é que ele não sabia dos netos? Ou seria que estava enganado? Que tinha estado com eles recentemente e não se lembrava? Assim como já não se sabia quais as suas idades atuais, ou até mesmo os seus nomes exatos.
Tudo isto eram coisas que ele não poderia contar a ninguém.
Mas na verdade também já não tinha a quem mais contar estas coisas, a não ser à D. Manuela, a quem nunca tinha dado qualquer intimidade, a quem nunca falara de si nem de quase nada. Também não poderia dizer à sua nora, pois neste caso correria o risco de ferir a sua suscetibilidade.
Tinha uma recordação vaga de que a sua nora tinha sido cozinheira numa escola, ou numa qualquer instituição ligada a crianças. Lembrava-se de que a maioria das conversas dela girava à volta de crianças. Disto, ele lembrava-se claramente.
Não se lembrava de quando ela tinha deixado de lhe falar sobre crianças. Se tinha sido quando os filhos tinham deixado de o ser ou se tinha deixado de trabalhar em escolas ou outras instituições relacionadas com crianças. Atualmente, ele não sabia ou não se lembrava se ela ainda estava a trabalhar ou se já tinha idade para estar reformada. E nem se lembrava se ela também já seria avó como ele. Nesse caso, ele já seria bisavô. Decidiu que numa das suas próximas visitas arranjaria maneira de saber. Talvez até lá pensasse na forma mais simpática de o fazer. Iria planear melhor essa conversa, mas tinha medo de depois se esquecer do que tinha planeado e ficar inseguro para entabular uma conversa que parecesse espontânea.
Mas, hoje, os planos deles eram outros.
Hoje ia deitar-se de lado. Virado para o outro lado da cama.
Hoje ia olhar o livro que ela escrevera quando ainda eram namorados.
E hoje não quereria saber do que se lembrava da narrativa.
Porque hoje o livro dela ia deixar de ser só dela.
E ele ia lê-lo, em silêncio.




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