Eu nunca disse
a ninguém que não gostava da escola. Nunca disse à minha mãe, nem ao meu pai,
que não queria ir para a escola.
Todos os dias
me levanto da cama, sem oferecer resistência, adoto um processo quase
automático de me arranjar e faço a viagem até à escola, calado, no banco de
trás do carro da minha mãe. Olho através da janela a paisagem que me alimenta
os sonhos, a vida que eu construo e em que quero acreditar.
Tenho
receio de ir para a escola. Quase tanto como de voltar para casa! Não das
rotinas, dos banhos quentes antes do jantar, das refeições à mesa de televisão
desligada e conversas estimulantes, nem dos mimos da mãe ou do pai. Não! Do que
eu tenho medo é dos fantasmas que me aparecem nos sonhos!
Desde criança
pequena que me angustia a sensação de sentir que não domino o sono e que este
me acaba por transportar para uma caverna bem funda, onde os medos e os
terrores se tornam desesperantes!
Tenho
doze anos. Frequento uma escola básica do Porto, perto do local de trabalho da
minha mãe, que tem um pequeno, mas charmoso, salão de chá no centro histórico
desta cidade.
Gosto da
escola. Tenho colegas simpáticos, amigos que me acompanham nas brincadeiras
permitidas nos intervalos e os professore aturam-se bem. Mas…
De há uns
tempos para cá, algo mudou. Na semana passada a minha mãe foi-me encontrar a
dar com a cabeça nas paredes do meu quarto. Foi um episódio inadvertido. Mas
real, e ela apanhou-me. Já não aguentava que ela me forçasse a manter a persiana
levantada, a cama arrumada e me obrigasse a levar a roupa suja, em que eu
odiava tocar, para a máquina que se encontrava na lavandaria. Como é que eu
alguma vez vou conseguir levar a minha roupa suja, cheia de micróbios nojentos
e poeiras bolorentas até ao outro lado da casa?
E mais… Eu
tinha medo de sonhar com o Marco!
Marco é um
rapaz lá da escola que anda no sexto ano, mas é mais velho do que eu. Uns dois
ou três anos. No entanto, é imensuravelmente mais alto! E mais forte!
No meu sonho
recorrente, Marco arremessa pedras na minha direção. Estamos na escola, no
intervalo do almoço, o maior e mais ameaçador intervalo de tempo que passo na
escola! No sonho, consigo sempre fintar a pedra, atirando-me para o chão. Mas é
o Filipe que apanha com ela. Sempre! É o Filipe que fica magoado, com a cara
coberta de sangue. Sempre!
Tenho medo do
Marco. Mas o que me aflige mais é não conseguir ajudar o Filipe! E essa culpa é
insuportável! É sempre neste momento que acordo no sonho. Sem nada ficar
resolvido.
Os meus pais
conhecem o Marco. Usa o cabelo rapado e um boné que coloca à socapa, quando
nenhum professor está a olhar, com a pala virada para trás. Usa calças sem
cinto e deixa-as cair até ao meio das coxas, o que faz com que se veja a sua
roupa interior, sempre de cor vistosa. O seu andar é gingão, os pés nas
sapatilhas sem meias, com as biqueiras levemente para fora.
O Marco chama
a atenção de toda a gente. Não sei bem se é por nunca abandonar o seu ar
trocista, se por não descurar a sua exuberante indumentária ou se pelo seu
olhar vazio.
Eu sei que o
Marco tem algumas vítimas prediletas. E sinto que não sou eu que estou no
centro dos seus focos diretos, mas quando a minha mãe puxou o assunto foi muito
mais fácil falar disto do que daquilo que realmente me assusta.
Por me sentir
adoecer, os meus pais levaram-me ao médico, que não me encontrou nada de mal.
Nada que fugisse à média, muito menos ao desvio padrão. Aconselharam-nos a
falarmos diariamente sobre o meu dia-a-dia e a articular com o meu diretor de
turma que provavelmente teria alguma sugestão a fazer.
Quando contei
os meus sonhos, o médico desdramatizou e aconselhou-nos aos três a monitorizar
a nossa ansiedade.
Saídos da
consulta, o pai prometeu-me que iria ver mais vezes os meus treinos e a minha
mãe sugeriu que jantássemos os dois, sozinhos, no dia seguinte. Fora de casa,
num restaurante perto do rio, onde a refeição é servido à luz das velas.
Seríamos só os dois e eu adorei a ideia!
Deixamos o carro ao lado do
Mercado Ferreira Borges e descemos até à Praça do Cubo. De mãos dadas. A princípio,
hesitante em dar a mão à minha mãe, acabei por agarrá-la com firmeza. A
probabilidade de nos cruzarmos com alguém conhecido era ínfima, pensava eu.
*
A noite estava
muito agradável. A temperatura era amena e a lua refletia-se no Douro.
Dirigimo-nos para um restaurante-bar localizado junto à Ponte D. Luís.
Senti-me
crescido e importante. O meu corpo esticara e a roupa nova que recebera no meu
último aniversário assentava-me bem. Olhei a minha mãe e percebi que o cérebro
dela procurava as palavras. Não queria que nada falhasse na nossa conversa. E
eu também não queria falhar. Com ela.
Momentaneamente,
sinto o sangue circular nas têmporas, o movimento do ar mais lento nas narinas
e os batimentos cardíacos aumentarem de intensidade. Receio não conseguir controlar
a fluidez da minha voz. Porquê esta ansiedade?
Porque sei que não pode correr
mal. Tenho que abrir as portas do meu coração e deixar a minha mãe caminhar na
minha direção.
Ela olha-me
para a testa e para aquele lugar no meio dos olhos onde me beijava
demoradamente quando em pequeno pousava a minha cabeça no seu peito. O olhar da
mãe está cheio de amor e eu sinto-me tranquilo e reconfortado. Respiro fundo e
o meu coração desacelera.
- Simão, eu
sei que gostas da escola…. Manténs os amigos de sempre e já fizeste outros…
- Hum, hum… -
Mastigo alguns sons junto de quatros pedaços de batatas que meto ao mesmo tempo
na boca. Não sei o que dizer nem que caminho tomar.
- Tens algum
amigo que te preocupe?
- Não!... –
Faço um esgar, mostro estranheza. Não quero fazê-lo. Foi sem intenção.
Ela corta a
carne suculenta enquanto olha para mim.
- O que é que
mais gostas de fazer com os teus amigos? Há alguma coisa de que gostes e os
teus amigos não gostem?
- De brócolos!
– Desconverso. Agora não sei bem se estou preparado para o rumo da conversa que
ela está a encetar.
- Simão, estou
a falar de alguma brincadeira, ou jogo, ou algum tipo de conversa que eles
costumem ter… nos intervalos das aulas, por exemplo…
- Eu já não brinco
nos intervalos! - Será que a minha mãe não sabe disso?
- Eu sei…
quando me refiro a brincar, quero dizer… convives com os teus amigos, têm
conversas interessantes…
-
Muitas vezes sou apontado por ser o “certinho”. E não querem falar comigo por
isso…
-
Não deve ser bem assim, Simão. E tu deves proceder de um modo que consideres
correto para te sentires bem contigo próprio. Só assim é que os outros te
respeitarão também.
- Eu sei. Mas
tu sabes…às vezes alguns rapazes não entendem as coisas da mesma forma que as
entendo…
- E tu o que
achas desses meninos? Conheces algum que te preocupe mais?
- Sim. Talvez
o Marco.
- O que tem, o
Marco?
- Não tem pais
como eu.
- O que queres
dizer?
- Que não vive
com os pais, está numa instituição. Vive com outros colegas lá da escola e com
outros mais velhos ainda, de outras escolas.
- Mas nem
todos os meninos que estão institucionalizados se comportam mal, pois não?
- Claro que
não. Só conheço o Marco e alguns dos seus amigos!
- O que é que
o Marco costuma fazer?
- É muito
bruto nas brincadeiras. Às vezes atira com meninos mais novos ao ar, dá-lhes
“cachaços”, chama-lhes nomes feios, insultam as mães. Tu… Uma vez já te
chamaram um nome muito feio e eu fiquei muito triste, porque sei que não está
certo e que, se tu soubesses disso, também ficarias triste.
- Não, Simão.
Eu sei que eles só te queriam provocar a ti. Aliás, não me conhecem de lado
nenhum…
- Agora eu sei
disso, mãe. Mas na altura ainda era muito novo e estava há pouco tempo naquela
escola e nunca tinha ouvido dizer palavrões…
- Cresceste
muito desde o início do ano letivo, Simão. Estou muito orgulhosa de ti. Mas
alguma coisa anda-te a preocupar. Pensei que fosse algo relacionado com as
companhias da escola, mas agora vejo que não é.
- Pois não.
- Então o que é,
filho?
- Tenho medo
que não gostes mais de mim, como dantes.
- Porque dizes
isso?
- Porque sei
que gostavas que eu fosse melhor aluno, tirasse melhores notas nos testes.
- Eu já te
disse isso? Ou dei a entender?
- Não, mas
ficas muito mais feliz sempre que eu recebo uma nota mais alta. E eu queria que
fosse sempre assim.
- Simão, tu
sabes que eu e o teu pai ficamos felizes por seres um menino trabalhador e
ficamos satisfeitos com as tuas notas, desde que sintamos que deste o teu
melhor!
- Eu sei. Mas
eu queria tirar melhores notas. Sei que vocês ficariam também mais contentes
comigo. Mas às vezes sinto que não tenho memória para aprender todos os
assuntos tratados nas aulas.
- Tu consegues
estar atento nas aulas, Simão?
- Às vezes
não.
- Porquê?
Ficas a pensar em quê?
- Às vezes
fico a pensar em ti, no pai e na Joana.
- E o que pensas,
nessas alturas?
- Que, se
calhar vocês vão deixar de gostar de mim. E que a Joana tira melhores notas,
por isso, se tiverem que escolher um filho para ficarem, vão escolher a Joana.
Eu sei que é só um medo irracional, mas eu sinto-o.
- Sabes que
isso é um disparate, não sabes? Nós nunca escolheríamos um filho em detrimento
de outro…
- Talvez…. Mas
há momentos em que tenho medo que isso possa acontecer.
- Isso é
fantasia, filho. Na realidade, nunca vai acontecer. Prometo.
Sorriu para o
gelado que o empregado coloca na mesa, à minha frente.
Suspiro e
relaxo. Sei que este gelado me vai saber mesmo bem.
Consegui
conversar mais um pouco com a minha mãe. Sei que foi muito bom, para mim e para
ela.
Hoje não vou
ter medo de dormir. Nem de sonhar.
Porto,
Margarida
Frias Rocha