segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

ÁLBUM ABERTO / Margarida Frias Rocha

Hoje não está frio. Nem calor. Mas a mantinha azul, enrolada há um bom par de meses no canto do sofá creme, olha para mim. Sabe bem desenrolá-la em cima do meu corpo que se coloca instintivamente em posição fetal.
A sala está arrumada, tal como a D. Felismina a deixou ontem e os miúdos, que jantaram em casa de amigos, ainda não voltaram para a caracterizar com os seus modos tão próprios.
Reparo no álbum de viagens – antigo já, pois há muito que não imprimimos nenhuma foto – esquecido debaixo da manta e que agora escorrega para o chão, para aquele ponto único e cintilante da sala, efeito do feixe de luz proveniente do sol outonal.
            Vislumbro, pelo canto do olho, a folha verde de ponta castanha, através da ampla janela que abre a sala para a vida no bosque.
A página do álbum aberta mostra-me sorrisos felizes e doces. Em Bruge, num baloiço que dançava por cima da neve que se desfazia ao sol de uma primavera, vocês riam com as cabeças levemente inclinadas para trás. As pontas dos cabelos que espreitavam do gorro voavam, tal como as vossas emoções. E as minhas, agora.
            E esta é só mais uma das múltiplas recordações felizes que vou – vamos – somando ao longo da vida. Tenho tudo para me sentir feliz, mas….
 Uma gota de alguma substância gelada pica-me o lado esquerdo do coração, preparando-se para a qualquer momento ser bombeada através do sangue e espalhar-se pelo corpo todo.
Não, não me posso encolher. Tenho que reagir!
Com o braço direito, afasto a manta e estico as pernas.
O telefone toca… Percebo que não fui a tempo.
Falhei por menos de um segundo!
Já tinha de ser.
*
A caminho do hospital, o carro conduz-se sozinho. Só podia… eu não estou em mim. Uma nuvem densa pesa-me na cabeça, na fronte e em redor dos olhos que fitam ao longe a estrada. Pressão arterial alterada…diria a Raquel. Sei que o que ela saberia e não quereria dizer-me seria…. estás em pânico, mãe, e não podes!
Sinto o carro pisar uma cratera no asfalto e lembro-a dizer ainda sem dois anos: mamã, pópó caiu!. Quero sorrir, mas não consigo.
Mamã, o papá está bem? Está à nossa espera? Vai ser operado? Quereria saber o Nuno, muito objetivo e direto nos seus receios. Com ele tem que ser tudo às claras, preto no branco, verdade.
Mas eles não estão no carro e, sem eles, não sei muito bem como chegarei ao hospital a tempo de te ver.
Quando digo não sei, é porque não sei mesmo. Como disse, o carro orienta-se sozinho.
*
Milagrosamente, consegui estacionar o carro na Alameda ao lado do Hospital S. João.
Agora são os meus pés e as minhas pernas que precisam de controlo. Não sinto o chão, só o corpo oscilante. Nítido, o descontrolo dos movimentos dos braços ao longo do corpo.
Só falta mais um pouco até alcançar a porta. Já a vejo - aliás, é a única coisa que a minha visão alcança - e está desimpedida. Estranho a ausência de movimento neste local.
*
Dobro o vai-vem envidraçado e mais uma vez o corredor me parece vazio.
Ao fundo, vejo-te de pé. Sorris para mim, enquanto os teus braços se abrem para me acolher num amor bem conhecido.
Vens ao meu encontro.
Parei. Para onde me fogem as forças? Não sinto… nada.
Agora sei que me levarás de volta ao sofá creme da nossa sala e me envolverás na mantinha azul.
Foi só um susto! – Dirás, retendo os braços em mim. Os olhos pousados nas fotos do álbum aberto.