domingo, 12 de abril de 2015

SONHAR EM MARÇO / Margarida Frias Rocha

Caíam pedras do céu que se desfaziam ao tocar a areia.
 A liquidez penetrava por entre os grãos amarelos, torrados. Agora húmidos.
 Ainda assim, o ar não estava cinzento. O tom alaranjado e quente preenchia a atmosfera. Fim de tarde aquecido que antecedia a noite estrelada e fria.
 Nos contrastes, todas as estações coabitavam neste dia de março.
Rolando das dunas, os miúdos tropeçavam uns nos outros, quais pintassilgos caídos do ninho.
Aconchegada no poncho, abracei-me, enterrando as mãos frias no colo.Por baixo do matizado garrido do xaile, o vestido preto e justo moldava-me o corpo. O mesmo vestido despido pelo teu pai no dia em que iniciaste a tua vida em mim. Resquícios de um ficheiro erótico hoje arquivado. (...)
O silvar de um carro a passar lá atrás, na estrada, faz-me levantar os olhos para cima da duna e o senhor Gonçalo acena-me ao longe, enquanto faz tinir a buzina da sua bicicleta. Sorrio-lhe, esperando com isso dispensar o aceno, para não ter que retirar o braço amolecido junto ao peito. A preguiça e o aconchego em mim mesma sabem-me bem.
 O sol brilha na água e espelha-se em mim. Momento feliz.
Os miúdos voltam a subir a duna, preparando mais uma descida tumultuosa e risonha dos seus corpos. Com roupas amarrotadas, são croquetes panados de areia, resíduos de plantas aquáticas e felicidade.
Invadem-me recordações do marido que ainda amo. Lembro-o empoleirado numa das árvores do outro lado do lago, ajudando uma mãe pássaro a fabricar o seu lar. Tempo anterior ao teu, quando ainda não eras em mim.
O Zé, filho da Lucinda, com mais cinco ou seis meses que tu, é o mais velho do grupo. É ele que comanda as tropas e que mais rapidamente alcança o cimo da duna. Lembro-me que foi o primeiro a sair do alcance da minha vista. O Zé. Não foste tu. Tu foste o último que deixei de ver. Penso eu que sim. É o que recordo. (...)
De repente,… um barulho estridente! Um som prolongado a acabar numa batida seca.Já não penso, já não ouço, olho mas já não vejo nada. 
A noite instalou-se e o silêncio inundou a atmosfera.
Calor, calor intenso, insuportável. De tão forte, tolda-me os sentidos e os movimentos. Não sinto mais vida em mim.Toda a existência colocada em pausa (...)
Não, tão depressa não! Tenho medo. Posso ir mais devagar…Não, tão devagar não! Tenho que correr para chegar mais depressa! O cimo da duna ainda está tão longe e as minhas forças falham! Não podem falhar!
Mais um ou dois passos e os meus olhos alcançam o outro lado da duna. Sei que no outro vale existe uma estrada, uma rua empedrada e tosca, onde muitos veículos jovens ou velhos e por vezes bêbados correm ao se sentir sozinhos como que fugindo deles próprios.
 Eu sei que é assim e até os entendo.
 Mas hoje não! (...) Só falta mais um passo.
 Estanco um segundo e olho o mar lá atrás. Fujo para um momento anterior ao que não quero, ao que tenho receio de não conseguir viver! Mas tem de ser.
 A possibilidade findou…
Quando acordo, o coração volta para o peito. Desacelera devagar.