Caíam
pedras do céu que se desfaziam ao tocar a areia.
A
liquidez penetrava por entre os grãos amarelos, torrados. Agora húmidos.
Ainda assim,
o ar não estava cinzento. O tom alaranjado e quente preenchia a atmosfera. Fim
de tarde aquecido que antecedia a noite estrelada e fria.
Nos
contrastes, todas as estações coabitavam neste dia de março.
Rolando
das dunas, os miúdos tropeçavam uns nos outros, quais pintassilgos caídos do
ninho.
Aconchegada
no poncho, abracei-me, enterrando as mãos frias no colo. Por baixo do matizado
garrido do xaile, o vestido preto e justo moldava-me o corpo. O mesmo vestido
despido pelo teu pai no dia em que iniciaste a tua vida em mim. Resquícios de
um ficheiro erótico hoje arquivado. (...)
O silvar
de um carro a passar lá atrás, na estrada, faz-me levantar os olhos para cima
da duna e o senhor Gonçalo acena-me ao longe, enquanto faz tinir a buzina da
sua bicicleta. Sorrio-lhe, esperando com isso dispensar o aceno, para não ter
que retirar o braço amolecido junto ao peito. A preguiça e o aconchego em
mim mesma sabem-me bem.
O
sol brilha na água e espelha-se em mim. Momento feliz.
Os miúdos
voltam a subir a duna, preparando mais uma descida tumultuosa e risonha dos
seus corpos. Com roupas amarrotadas, são croquetes panados de areia, resíduos
de plantas aquáticas e felicidade.
Invadem-me
recordações do marido que ainda amo. Lembro-o empoleirado numa das árvores do
outro lado do lago, ajudando uma mãe pássaro a fabricar o seu lar. Tempo
anterior ao teu, quando ainda não eras em mim.
O Zé,
filho da Lucinda, com mais cinco ou seis meses que tu, é o mais velho do grupo.
É ele que comanda as tropas e que mais rapidamente alcança o cimo da duna.
Lembro-me que foi o primeiro a sair do alcance da minha vista. O Zé. Não foste
tu. Tu foste o último que deixei de ver. Penso eu que sim. É o que recordo.
(...)
De
repente,… um barulho estridente! Um som prolongado a acabar numa batida seca.
Já não penso, já não ouço, olho mas já não vejo nada.
A noite
instalou-se e o silêncio inundou a atmosfera.
Calor,
calor intenso, insuportável. De tão forte, tolda-me os sentidos e os
movimentos. Não sinto mais vida em mim. Toda a existência colocada em pausa
(...)
Não, tão
depressa não! Tenho medo. Posso ir mais devagar…Não, tão devagar não! Tenho que
correr para chegar mais depressa! O cimo da duna ainda está tão longe e as
minhas forças falham! Não podem falhar!
Mais um
ou dois passos e os meus olhos alcançam o outro lado da duna. Sei que no outro
vale existe uma estrada, uma rua empedrada e tosca, onde muitos veículos jovens
ou velhos e por vezes bêbados correm ao se sentir sozinhos como que fugindo
deles próprios.
Eu
sei que é assim e até os entendo.
Mas
hoje não! (...)
Só
falta mais um passo.
Estanco
um segundo e olho o mar lá atrás. Fujo para um momento anterior ao que não
quero, ao que tenho receio de não conseguir viver! Mas tem de ser.
A
possibilidade findou…
Quando acordo, o
coração volta para o peito. Desacelera devagar.